Escrito por: Karina Ribeiro / [email protected]
Fotos: Fredox Carvalho
Depois de três anos de forte variabilidade de chuvas no estado, mais uma vez os irrigantes são vistos como vilões solitários pela escassez hídrica em alguns municípios. Produtores de cinturões verdes de Senador Canedo, Anápolis e Catalão tiveram suas bombas lacradas ou foram multados interrompendo a produção, gerando prejuízo e encarecendo produtos nos supermercados. Entretanto, para especialistas, entra nas contas a falta de investimentos do poder público em captação e gestão de recursos hídricos, a necessidade de recuperação das nascentes que abastecem os rios e um acordo que defina regras claras no uso múltiplo da água. Apesar deste conceito não ser novo, ainda se engatinha para a resolução.
Na prática, desde representantes do poder público até agricultores entendem que é incompatível permanecer de forma sustentável com o sistema hídrico atual. Inclusive, em algumas regiões, o problema já se arrasta há décadas dando sinais claros de colapso. A estratégia mais bem aceita é que sejam trilhados caminhos que pontuem o peso, deveres e direitos de cada agente: setor público, indústrias, irrigantes e população.
O produtor de Catalão, Célio Santana Pires, é exemplo da insegurança dos irrigantes locais. Ano passado teve as bombas de irrigação dos dois e meio hectares (dois arrendados) para plantio de hortifrúti, lacradas. “Este ano não arrendei e diminui minha área pela metade”, conta. Mas conta que investiu na mudança do sistema de irrigação de aspersão para gotejo – economia de 40%. “Fizemos nossa parte e nada é feito por eles. Aqui temos água em abundância em rios a nossa volta e o poder público nunca investiu”, completando que há 40 anos o sistema é o mesmo.
A reportagem da Revista Campo entrou em contato por mais de uma semana, diversas vezes, com a relações públicas Fernanda Mendonça do superintendente de água e esgoto de Catalão, César Ferreira, mas ela não conseguiu marcar entrevista ou não retornava as ligações.
Outro caso representativo é o de Anápolis, onde especialistas alertam que o primeiro sinal de ineficiência do sistema de abastecimento de água foi apresentado em 1996. De lá para cá, o município ganhou reforço de indústrias de grande porte no Distrito Agroindustrial de Anápolis (Daia), considerado o segundo maior pólo farmoquímico do país, e foi protagonista de um dos crescimentos demográficos mais dinâmicos de Goiás. Naquela época, a cidade abrigava 263 mil habitantes. A estimativa deste ano é de 366 mil habitantes. Ou seja, uma evolução de 39% em 19 anos.
No município, depois de um prolongado período de estiagem, 13 irrigantes do cinturão verde do Córrego do Piancó, onde 70% da água é retirada para abastecimento da população, tiveram suas bombas lacradas ou foram multados no início de setembro. As medidas são consideradas paliativas e feitas a ‘toque de caixa’ para dar fôlego ao abastecimento da população. A gerente da Saneago em Anápolis, Tânia Valeriano, afirma que logo que este procedimento foi feito, o nível de captação voltou ao normal. Mas a gerente admite que os investimentos para ampliação de produção de água em Anápolis deveriam ter sido iniciados há muitos anos. Daí para frente a queda de braço é forte.
Piancó
Quando começaram os primeiros sinais de escassez hídrica no município, em 1996, a presidente da Associação dos Produtores Rurais da Comunidade Piancó, Amélia Ferreira Mendes, afirma que foi contabilizado um imenso prejuízo, provocado pelo interrupção de água para boa parte dos 30 irrigantes associados, sobretudo de plantios de hortas de repolho, tomate e pimentão.
Ela relembra que foi firmado, em 2000, um Temo de Ajustamento de Conduta (TAC) no qual direciona a responsabilidade de produtores investirem no reflorestamento de nascentes e Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e, por outro lado, a Saneago deveria fazer investimento para captação de água em outro manancial. “Fizemos nossa parte e eles não cumpriram a deles”, diz. Amélia explica que a comunidade ainda buscou novas culturas que, naturalmente, necessitassem de menor quantidade de água como seringueira, pupunha e banana (essa com maior aceitação).
O plantio de banana foi o que imprimiu sustento para a família de Amélia Toda semana, garantia a retirada de 500 caixas de frutas que seguiam comercialização certa para o Ceasa local. Mas após o dia 13 de setembro, quando lacraram as bombas de muitos irrigantes locais, Amélia sentiu o peso do prejuízo no bolso. Do volume de 500 caixas caiu praticamente para um quinto da produção. “Meu prejuízo ainda não conseguimos calcular”, conta. Isso ocorreu mesmo com a documentação do autorga de uso de água dentro dos parâmetros exigentes. Outros produtores, calcula, se afundaram em dívidas maiores. O reflexo também foi sentido para o consumidor. Na ocasião, o preço da banana ficou até 50% mais elevado.
Diante de toda esse imbróglio, ela ressalta que reuniões entre os órgãos públicos vinham sendo feitas sem o conhecimento do produtor. O temor é de que seja criada uma Área de Proteção Ambiental (APA), o que limita e muito, o uso da terra.
“Estão querendo fazer a APA sem investir na parte técnica. A APA é o extremo e é a primeira que estão tentando fazer e temos a sensação que é por debaixo dos panos”, avalia o produtor da comunidade Piancó, que não quis se identificar. Ele concorda com o trabalho em conjunto, embora sinta pouca credibilidade por parte do poder público. “A Saneago nunca investiu um centavo aqui, não existe barragem de contenção de água e o local é todo desmatado”, diz.
Captação
A consultora técnica para a área de Irrigação e Meio Ambiente do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural em Goiás (Senar Goiás), Jordana Sara, afirma que não há como culpar irrigantes pela falta de água para abastecimento. “Toda vez precisam achar um culpado, mas o problema se resume a gestão e planejamento”, afirma ao ressaltar que este é um problema comum entre todas as cidades.
Em relação à Anápolis aponta que 100% do volume da outorga de uso de água pela Saneago já é direcionada para o abastecimento da população. “E a indústria e a agricultura? Costumo dizer que eles mesmo causam a calamidade”, afirma. Para ela, não há planejamento que acompanhe o crescimento das cidades, não há investimentos em barramento de água e a tarifa de produto não para de elevar. É conta que não fecha.
A gerente da Saneago rebate que até o mês de agosto são utilizados 850 mil litros por segundo dos 1,2 mil da outorga. “Só em momentos críticos utilizamos toda a capacidade e tivemos que intervir na irrigação”, pontua.
O representante da Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH) em Goiás, Marcos Correntino, um estudo de disponibilidade hídrica realizado há 12 anos, apontava necessidade de captação de água em outros mananciais para abastecer o município – em função do crescimento da população e montante da captação. “Está bastante poluído e o tratamento fica oneroso”, diz. Foi levantado também a necessidade de recuperação das nascentes da bacia mas, conforme ele, nada foi feito.
Embora não tenha realizado nenhum estudo hídrico em Senador Canedo, Correntino não titubeia ao dizer que as causas são as mesmas. Com crescimento populacional vertiginoso, o sistema de captação de água está longe de acompanhar o ritmo. Moradores do município sofrem quase que anualmente com o problema sem enxergar uma luz no fim do túnel. Bombas foram lacradas e a Procuradoria Geral do Município prepara ação, com pedido de liminar, para a retirada de pivôs de irrigação instalados nos mananciais que abastecem a cidade.
O presidente da Agência Municipal de Saneamento de Senador Canedo (Sanesc), pastor Nando Cardoso afirma que além da retirada clandestina, o descuido do manancial e a falta de investimentos em outros anos também sejam causas da escassez.
Ele explica que sobrevoou a região e num espaço de pouco mais de um quilômetro existem quatro represas, sem nenhum reflorestamento. “Não tem como a bacia agüentar”, afirma.
Ele explica que nos últimos três anos, o município cresceu 13% ao ano, com 40 mil pessoas/ano. Entretanto, informa que os oito irrigantes do município contribuem com alto impacto na captação de água e relata a falta de outorga.
Investimentos
Tânia relata que em 2009 foi iniciado estudo de concepção para captação em outros pontos para os próximos 35 anos. Segundo ela, estudo mostra que o sistema Piancó- Anicuns – Capivari tem vazão suficiente. “A previsão são de oito anos de obra e algumas estão em andamento, como a duplicação de adutoras de água bruta”, informa. Conforme estudo, diz, a captação no Capivari seria necessária daqui a três anos, porém já foi acelerado processo de captação.
Em Senador Canedo, foram restaurados 25 poços artesianos, perfurados mais 15. Um reservatório foi construído para segurar 10 milhões de litros de água e outros quatro de 1,1 milhão cada.
Soluções
A sensação para a climatologista do Instituto de Estudos Sócioambientais da Universidade Federal de Goiás (Iesa-UFG), Gislaine Cristina Luiz, é que ninguém ainda acordou para o problema. Ela ressalta que a variabilidade de chuvas dos últimos três anos é considerada normal para Região (cíclica), mas que precisa ser revisto a forma de captação de água dos irrigantes, a impermeabilidade do solo tanto da zona urbana quanto rural e planejamento. “É preciso verificar o papel e peso de cada agente. A queda no volume de chuvas sozinha não responde aos problemas. O sistema de irrigação sem planejamento afeta sim o lençol freático”, desabafa. Explica que as causas afetam regiões não produtoras, como é ocaso da Cidade de Goiás. “Não há como restringir, todos sofrem”, afirma.
Correntino defende a construção de barragens em alguns municípios, a exemplo do João Leite. Ele explica que o reservatório gera segurança hídrica em momentos de seca. “Anápolis precisa disso, além de buscar outro manancial”, afirma. Ele argumenta que uma reunião entre representantes públicos e o comitê de bacias devem ser feitas para que ninguém fique prejudicado.
Defendidos por todos, as recuperações das margens é a forma mais eficaz de absorção de água parar as nascentes que compõem os grandes mananciais sejam alimentadas ao longo do período de estiagem. No mesmo tom, representantes de todos os municípios e do Estado informam que projetos de recuperação devem ser iniciados ainda neste período das águas. Jordana ressalta ainda que é preciso criar outorgas coletivas do uso da água e conservação. Ele defende instrução para ribeirinhos que desconhecem ou tem dificuldade em conseguir outorga para o uso da água.
A gerente da Saneago em Anápolis diz que está sendo criado um Programa Produtor de Água, cujo projeto será feito em parceria com Emater, Saneago, Ministério Público e produtores rurais. “Para conservação da bacia e regulamentação do uso”, reforça.
Ele diz que estudo deve ser concluído no fim novembro, com total necessidade de adesão dos produtores. “Eles serão remunerados para o conservação, mas o investimento inicial é do poder público”, diz. Sem adesão, explica, devem partir para a criação da APA.
Outorga
O superintendente de Recursos Hídricos da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Secima), Bento Godoy, não acredita que haja desconhecimento por parte do produtor rural goiano sobre a necessidade de outorga para uso da água, já que a legislação existe há quase três décadas.
Ele ressalta que, na prática, é preciso apresentar documentação básica da terra, projeto de irrigação, preencher formulário e referencial de culturas. “No formulário a parte mais importante é a vazão, quantidade de horas e os meses utilizados”, explica. O prazo médio para liberação é de nove meses.
Ele explica que não liberação é mais recorrente nas Regiões de Cristalina e Goiatuba, por conta da saturação dos mananciais. Limite para ser considerado uso insignificante é vazão de um litro por segundo e barragem de até 5 mil metros cúbicos.